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A Bíblia como Literatura - Lendo as narrativas

bíblicas

 

Há na Bíblia vilões clássicos como Acabe e Jezabel no livro de Reis, Satanás, os fariseus no Novo Testamento, etc. Mas pode haver surpresas. Entre ações heróicas no segundo livro de Samuel, Davi é descrito por um instante como vilão na história de Bate-Seba e seu esposo. Ele toma a mulher do soldado e o envia à morte para legitimar a união, sendo punido severamente com a morte do filho ilegítimo (2 Samuel 11-12). Deus mesmo pode ocupar tal papel. No capítulo inicial de 1 Samuel o narrador apresenta Ana como estéril, afirmando para nós, leitores, que o causador dessa desgraça é Deus. Ele é o inimigo da protagonista. No decorrer da história Deus atenderá ao pedido de Ana e se converterá em seu aliado.
O importante é compreender que o narrador dispõe os dados que tem em mãos para configurar os personagens de modo a distinguir os figurantes, os protagonistas e os vilões e identificar o papel desempenhado por cada um deles. O narrador fará de tudo para nos colocar ao lado de quem ele deseja e para rejeitarmos quem ele quer que seja rejeitado. O desenvolvimento da narrativa se dará fundamentalmente na tensão criada entre os personagens. Robert Alter nos dá preciosos esclarecimentos sobre os métodos utilizados pelo narrador para configurar seus personagens:
Em narrativas a cargo de um narrador confiável em terceira pessoa, como é o caso da Bíblia, há uma escala ascendente (quanto à explicitação e à certeza) de meios para a comunicação de informações sobre as motivações, as atitudes e o caráter moral dos personagens. Sua índole pode ser revelada pelo relato de ações, da aparência, dos gestos, da postura e da roupa que usam; por intermédio dos comentários de outros personagens; pelo discurso direto, pelo monólogo narrado ou pelo monólogo interior; ou ainda pelas afirmações do narrador sobre o modo de ser e as intenções dos personagens, que podem ser feitas de maneira categórica ou motivada pelo contexto (2007: 177, grifo nosso).

Elementos constituintes das narrativas e sua aplicação à Bíblia

Personagens

 

 

Como a teoria literária pode ajudar no entendimento da Bíblia? Gostaria de apresentar alguns elementos práticos. A partir de agora minha análise se restringirá aos textos narrativos. Preliminar para o desenvolvimento do que segue é o reconhecimento de que o texto literário se constrói como um “jogo entre escritor e leitor”. Este deve ser considerado no processo de constituição do sentido do texto, visto que é ele quem traz à vida a letra morta disposta sobre o papel. A fim de ilustrar a relação lembro a metáfora utilizada por Umberto Eco no livro: Seis passeios pelos bosques da ficção. Para ele:
[...] um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção. Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo.
Às vezes o narrador nos deixa livres para imaginarmos a continuação da história (2001: 12).
A fim de persuadir o leitor, ao compor sua narrativa o escritor utiliza a combinação dos elementos: narrador, tempo, cenário, personagens e enredo. Com exceção do último, abordarei cada um desses tópicos para que percebamos como eles permitem uma melhor compreensão do texto narrativo.

 

 

Ao pretender falar sobre “Bíblia como literatura” é necessário esclarecer os componentes da proposição. Começamos com a pergunta: o que é “Bíblia”? É o termo que o cristianismo utiliza para referir-se ao seu livro sagrado, unindo as escrituras canônicas do judaísmo e a literatura própria do movimento cristão nascente. Como sabemos, a palavra provém do grego ta bíblia, os livros. Acredita-se que ela foi usada pela primeira vez pelos cristãos como referência ao Antigo Testamento na segunda Carta de Clemente de Roma aos Coríntios, por volta de 150 d.C. No século V d.C. o sentido foi estendido para toda a Escritura. No século XIII d.C. ta bíblia, entendida como declinação neutra plural, foi substituída pela forma feminina singular, passando a significar “o livro”, forma que se generalizou pelo uso latino do termo. Nessa última acepção ela foi assimilada pelas línguas modernas do Ocidente.

Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira
e-mail: leonel@mackenzie.com.br

 

 

 

 

LITERATURA BÍBLICA

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